Domingo, 11 de Fevereiro de 2007

O tempo e as palavras

História pregressa de um gato – história pregressa de uns homens

Partes, o céu demora-se / a entardecer e a lassidão flutua / como as volutas do incenso a arder. / Saio à varanda, regresso / aos gestos que me fixam / e a gata no telhado / seguindo-me com o olhar. / Estamos bem assim, eu sozinha / no azul da quase noite, ela em cima, / no fulgor do dia que se esvai.

                                                                Soledade Santos, Azul da quase noite





O fascínio instalou-se, súbito e imperioso, à primeira troca de olhares. Foi há muito tempo, em época de ainda inexperiência, de ainda inaceitação do irracional e de crença cega no poder absoluto do intelecto sobre o emocional. Racionalismo e autodomínio – e tudo era claridade, beleza pura, serenidade apolínea. Dionísio, com as suas mil formas de embriaguês libertária, não existia, ou, se existia, não era divindade da minha devoção Foi há muito tempo. Muito…

As paredes são líquidas e no seu líquido vogam, perdidos por entre peixinhos dourados, translúcidos, negros, de grandes barbatanas, ou prateados, com ou sem etéreos véus de noivas de fantasia, os olhos dos que passam por aquele mundo caleidoscópico. Por sobre a porta, nenhum aviso no género: “Deixai lá fora toda a esperança!”, “Deixai lá fora os sapatos e o guarda-chuva, ó vós que entrais!”, ou “Cuidado com o cão”.

Entramos. De cor em cor, o olhar, que já percorreu toda a paleta de tons possíveis, afunda-se no sorvedouro de dois olhos de um impossível azul-cobalto. São as cinco em ponto. É nesse momento que o tempo se detém. Morte de Apolo. Morte do Racionalismo. Quem falou em autodomínio? Rufando tantãs triunfais, Dionísio surge, em toda a sua glória, das profundezas do irracional.

Por detrás das grades que lhe cerceiam a liberdade, ele é o esperado. Mesmerizada, esqueço voluntariamente a má reputação que desde tempos imemoriais acompanha a sua linhagem, abandono-me à sua sedução: amor irracional, à primeira vista.

Do Japão dizem-me que ele traz desgraça consigo, que é capaz de matar uma mulher para assumir a sua forma. No mundo búdico, acusam-no de, à excepção da serpente, ter sido o único a não se comover com a morte de Buda. Há mesmo quem insinue caber à sua família a tarefa de ajudar a lançar as almas culpadas nas águas do Inferno. Ele próprio tem fama de traiçoeiro, de matreiro, de preguiçoso e egoísta; de não conhecer amigos.

Para os Muçulmanos, porém, é dotado de baraka, carisma, senhor de poderes mágicos. Antepassados seus encontravam-se muitas vezes entre os condenados, por bruxaria, a serem queimados vivos, em sacos ou em cestos, nos festivais do fogo que, em datas festivas, tinham lugar um pouco por toda a Europa.

O mistério dos seus olhos, que não deixam de me fitar, suscita-me pontos de interrogação quanto à veracidade das acusações na sua história pregressa.

Aproximo-me lentamente das grades que nos separam e estendo-lhe a mão para uma carícia. O descendente da deusa egípcia Bastet, cujos antepassados habitaram o palácio do rei do Sião, faz jus à sua fama de D. Juan, e passa nela, suavemente, uma linguínha áspera, sem por um momento tirar os seus olhos dos meus. “Felis Catus”, apresenta-se, “da nobre família dos Felídeos”. A sua linguagem é constituída por tritongos, expressivos acordes de vogais, facilmente interpretáveis.

Olho o único rival que jamais teve e que durante esse tempo manteve uma discreta distância. “Vai connosco?”, pergunto. “Claro!”, foi a resposta breve. Foi há muito, muito tempo, esse momento de fascínio.

Durante oito breves anos, o Felis catus siamês, Saki para os amigos, partilhou intensamente da nossa vida, até que o seu coração de amigo não suportou mais a ausência definitiva daquele que fora também o seu rival, e parou.

Não sei como se vive sem gato, mas não tenho gato, porque «Quem há-de abrir a porta ao gato/quando eu morrer?» ( António Gedeão, Poema do Gato).

Amanhã, inaugura-se a Praça de Touros da Capital. Com uma tourada à portuguesa. Elenco de luxo, prometem. Portugal, 2006.

Jovens do nosso país divertem-se a lançar gatos do alto de uma muralha histórica para os penhascos do sopé, onde se esfacelam. Portugal, 2006.

O divertimento mais “in” entre as nossas actuais donzelas é perfurar cabeças de gatinhos pequenos com… os saltos de agulha dos seus elegantes sapatos! Portugal 2006.

O Felis Catus, que jamais leu Nietzsche, ensinou-me, com a sua ternura apaixonada, a importância de Dionísio para, com Apolo, dar beleza à nossa vida. Quem ensinará aos nossos energúmenos nacionais que já é tempo de serem minimamente civilizados para merecerem ser considerados seres humanos?


Maria Alice Vila Fabião


publicado por arcadajade às 19:28
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