De criança sempre gostei de canas
e roubava-as do rio
ainda verdes.
Deixava-as depois estendidas ao sol durante todo o verão
e recolhia-as, ligeiras,
como o sussurro dos mosquitos.
Quando no Inverno
os ossos estalavam de frio
e os gatos tossiam sobre o damasqueiro
corria até ao sótão
e metia as mãos no meio das canas quentes
ainda com todo aquele sol em cima.
Tonino Guerra, Mel
Gato preto sentado no gelo - foto encontrada em portugues.torange.biz/
Nós, gatos, já nascemos pobres
Porém, já nascemos livres.
Enriquez - Bardotti - Chico Buarque, in Musical Infantil Os Saltimbancos, 1977
fotografia de Boyana Petrova
Fotografia de Daniel Mordzinski
No início, Deus criou o gato à sua imagem.
E achou que estava bem.
E de facto estava mesmo bem.
Mas o gato era preguiçoso,
Não queria fazer nada.
Então, alguns milhares de anos mais tarde, Deus criou o homem,
Com o fim único de servir o gato,
De ser seu escravo até ao final dos tempos.
Ao gato, Deus tinha dado a indolência e a lucidez;
Ao homem, concedeu a neurose, o dom da bricolage e a paixão do trabalho.
E o homem entregou-se-lhes alegremente.
Durante séculos, ergueu uma civilização toda baseada na invenção,
na produção e no consumo intensivos.
Civilização com uma única e secreta finalidade:
proporcionar ao gato conforto, morada e abrigo.
Jacques Sternberg, tradução da arcadajade
fotografia de Ebru Sidar
Senhores silenciosos dos telhados,
sombras dotadas de corpo,
lânguidos e alheios,
menos em março:
gatos.
Em março são provisoriamente animais
e depois regressam à inalcançável altura da sua solidão.
Luciano Moreira, in DiVersos 18, Poesia e Tradução, Fevereiro, 2013
Dois bichanos se encontraram
Sobre uma trapeira um dia:
(Creio que não foi no tempo
Da amorosa gritaria).
De um deles todo o conchego
Era dormir no borralho;
O outro em leito de senhora
Tinha mimoso agasalho.
Ao primeiro o dono humilde
Espinhas apenas dava;
Com esquisitos manjares
O segundo se engordava.
Miou, e lambeu-o aquele
Por o ver da sua casta;
Eis que o brutinho orgulhoso
De si com desdém o afasta.
Aguda unha vibrando
Lhe diz: ''Gato vil e pobre,
Tens semelhante ousadia
Comigo, opulento, e nobre?
Cuidas que sou como tu?
Asneirão, quanto te enganas!
Entendes que me sustento
De espinhas, ou barbatanas?
Logro tudo o que desejo,
Dão-me de comer na mão;
Tu lazeras, e dormimos
Eu na cama, e tu no chão.
Poderás dizer-me a isto
Que nunca te conheci;
Mas para ver que não minto
Basta-me olhar para ti.''
''Ui! (responde-lhe o gatorro,
Mostrando um ar de estranheza)
És mais que eu? Que distinção
Pôs em nós a Natureza?
Tens mais valor? Eis aqui
A ocasião de o provar.''
''Nada (acode o cavalheiro)
Eu não costumo brigar.''
''Então (torna-lhe enfadado
O nosso vilão ruim)
Se tu não és mais valente,
Em que és sup'rior a mim?
Tu não mias?'' - ''Mio.'' - ''E sentes
Gosto em pilhar algum rato?''
''Sim.'' - E o comes?'' - ''Oh! Se como!...''
''Logo não passas de um gato.
Abate, pois, esse orgulho,
Intratável criatura:
Não tens mais nobreza que eu;
O que tens é mais ventura.''
Manuel Maria Barbosa du Bocage