VÊ SE TE LEMBRAS
Era ainda cedo
vivíamos em tendas
só tínhamos
o que sabíamos transportar:
duas pedras de calcite
numa bacia de água e sal,
o cacto aéreo, desenraizado
como nós,
um jovem gato,
as lembranças guardadas
na bolsa de patchwork
que tínhamos costurado.
E o coração nómada
nómada nómada -
intimorato.
Soledade Santos, Sob os teus pés a terra, Artefacto, 2010
E se a tarde assim fica
nevoenta parada
e de mim ausente não encontro
urdidas teiazinhas
que me seguram aos dias,
pode acontecer
que sarça escura ou fogo me cerquem
o olhar. Porque é tarde.
E ondula descompassado o ar que expiro
e são ocos todos os sons.
Então ela vem, asas, a gata
de borboleta no fundo
da pupila de ouro, vem
cravando no silêncio opaco os passos
e entra
no círculo da minha aflição.
Nenhum abrigo. Mas o toque
na palma da mão perdida -
E o vento sopra para longe as nuvens
e da noite ladram ao longe os cães.
Soledade Santos
Partes, o céu demora-se
a entardecer e a lassidão flutua
como as volutas do incenso a arder.
Saio à varanda, regresso
aos gestos que me fixam
e a gata no telhado
seguindo-me com o olhar.
Estamos bem assim, eu sozinha
no azul da quase noite, ela em cima
no fulgor do dia que se esvai.
Soledade Santos
Fernand Léger
gritam os gatos todo o serão estridências
de cio que não pressionam mas despertam
a minha gata levantamos as duas o olhar
eu do livro ela do sono redondo e aspiramos
uníssonas correntes de ar gotículas nas vidraças
não sei que cheiros lhe fazem fremir o negro nariz
fecho as cortinas espevito o lume domesticado
volto ao livro de vez em quando
os gritos trespassam a noite e pela incisão
começam a entrar cães de inverno e potros azuis
Soledade Santos
passa uma musiquinha triste
na rádio a gata dorme o aconchego
da melodia casa vazia
uma cesta e o girassol
é quanto lhe basta para ser feliz
eu não me contento com tão pouco
um girassol a musiquinha
uma cesta tem mais do que eu
a gata não espera nada e tem
me a mim também
Soledade Santos