Vi esta tarde no mercado de Trajano
gatos enroscados às esculturas
de Richard Serra
pareciam despojos encontrados
no mesmo mar escuro
alheios à perda do mundo
e também, também isso
Não contam uma história
diria que ninguém os chamou
sinais uns dos outros - esculturas e gatos -
um conhecimento descobrem
de quanto vemos apenas
José Tolentino de Mendonça, De Igual Para Igual, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001
Uma mesa de plástico, branca
junto da tarde que morre
e renasce por pequenas paixões
de repente estávamos sozinhos
as ilhas muito inacessíveis
agora que escureceu
o menor desejo teria um sentido delicado
os olhos velozes de um gato
viam coisas belas
lado a lado com os homens
pareciam quase não ter sofrido
a mesa estava encostada às janelas do café
e nós de forma desolada
ignorados, aturdidos, de passagem
não muito mais
procuro desse facto uma versão
que me não conduza à inconfidência
era uma mesa lisa, branca
uma razão soletrava ao acaso
a medida soberana do incerto
olhos velozes de um gato os teus
olhos
José Tolentino Mendonça, Baldios, Assírio & Alvim, Lisboa, 1999