Segunda-feira, 31 de Outubro de 2005

Romance de D. Tico



D. Tico de Calatrava
era gato siamês
e fidalgo português
de que pouco se ralava.
Dos olhos azuis vivia
e de muita alegria
em telhados animada
por vidas loucas e muitas
de belas fêmeas fortuitas
numa vida desregrada.




Se saía sempre entrava
pela porta dos felinos,
idos mortos inquilinos
que a dona lhe lembrava
se das horas se esquecia,
passeando noite e dia
sabe-se lá por que mundo.
D. Tico ouvia calado
os exemplos do passado
com o prato já no fundo.




Dava um giro pela casa
enquanto a dona ia atrás,
não mais o deixava em paz
com a voz em viva brasa:
para sempre desse tréguas
às botas de sete léguas
e fosse calçar sapatos
iguais aos de toda a gente,
comum, sério e decente
como os falecidos gatos.




Os defuntos enxergava
em retratos mui vulgares,
dos que há em todos os lares
― muito a patroa os chorava!
O exemplo deles seria
uma vida de agonia,
e deitado no sofá
repousava das fadigas,
digeria leite e migas,
que uma vida apenas há.


   

Dizia-se que a morte
os colhera ali na estrada,
ainda que sossegada
lhes fora a vida sem sorte.
Deles não ouvira história
ou quem guardasse memória,
nem sequer ali por perto.
«Há muitos gatos», pensava
D. Tico de Calatrava
«cuja vida é um deserto.»




Contudo, naquele dia,
não se sabe por que azar
a dona pôs-se a falar
e, planeando, dizia:
«Hei-de comprar-te uma trela,
é preciso ter cautela.»
Ser um gato igual a um perro?
D. Tico de Calatrava
nada pior futurava
que tamanho e tão grosso erro.




E logo se tornou doce
uma vez ido janeiro,
roçava-se mui matreiro
por qualquer saia que fosse.
Com a dona se deitava,
com a voz dela acordava,
se saía logo vinha,
era amigo da patroa,
fazia-lhe a vida boa,
nunca a deixava sozinha.

Gato dá ponto sem nó?
D. Tico de Calatrava
era gato e nunca o dava
e nele pensava só.
Outro janeiro viria,
à noite segue-se o dia
e cuidar-se do futuro
mil desgostos sempre evita
e guarda o prazer e a grita
das belas gatas no escuro.




Não fosse ele cavaleiro
da ordem de Calatrava,
nem o de Eça lhe chegava,
de Sião era o primeiro!
Gato puro e nada casto,
pouco havia mais nefasto
que a metamorfose em cão,
e nos jardins da cidade,
mesmo cheio de vontade,
alçar a perna é que não.




E por honra estava pronto
para o que desse e viesse,
e a patroa que trouxesse
a sua ideia a confronto.
Não queria porém guerra
que somente a vida emperra.
Algum jeito se arranjaria
de dar a volta ao assunto,
não queimaria o bestunto
nem lhe causava agonia.




Eis senão quando uma tarde
a dona vem com a trela
tão brilhante e amarela
que até se sentiu cobarde
. «Bis, bis, bis, Tico, meu doce,
vem ver o que a mamã trouxe»,
chamava a dona, contente.
D. Tico não acordava,
nem sequer pestanejava
perante o chamado insistente.



«Bis, bis, bis; bis, bis; bis, bis»,
não desistia a patroa
da intenção pouco boa
de lhe dobrar a cerviz.
Encontrou-o ― humilhação! ―
escondido no fogão.
«Mas que fazes tu, ó Tico?
Sai-me daí para fora
vamos já os dois embora,
isso é manha e apaparico.»


E quando nele pegou,
vendo que não se movia
e morto lhe parecia,
logo com ele gritou:
«Passas a vida a dormir,
pareces um grão-vizir,
um passeio faz-te bem.»
E logo lhe pôs a trela:
«Olha que bonita é ela»,
e teimava: «Anda, vem!»


Mas não se mexia o gato,
tinha o corpo quente e mole.
«Teria apanhado sol?»
E com o bico do sapato
ficou a ver se despertava
D. Tico de Calatrava.
Ele, qual quê? moita, nada!
A patroa, muito aflita,
desatou em tal choro e grita
que acordava uma manada.




Logo veio a vizinhança
e entre ela a D.ª Maria,
famosa por bruxaria
e males sem esperança.
Estava tudo abismado
com o gato assim atado:
«Mas que lhe fez a senhora?
Quer prender gatos à trela,
ainda mais na Pascoela?
Valha que sou capadora!




Ti Rosa, vá-me à cozinha
(já se viu um gato-cão?
Isso é pior que maldição),
Ti Rosa, vá-me à cozinha
e traga a faca mais fina,
essa nunca desafina.
Sou mestra a capar leitões,
saberei capar um gato,
e não esqueça o borato,
desinfecta as incisões.»




Enquanto o gato isto ouvia
de um salto se libertava,
por sobre a mesa voava
e quem contou não mentia:
Num ai galgou a janela,
atrás de si indo a trela.
«Um gato tem sete vidas,
mas não lhe posso valer,
vejo foices a correr
pela estrada, desabridas.»




E avisou D.ª Maria:
«Não se cheguem à janela
nem acendam uma vela.»
E D.Tico já morria
sob um carro de suínos
que ao invés de alguns felinos
levam uma vida escrava.
E assim termina a história
de um siamês que foi glória
e tantos filhos deixava.




Mais um retrato ficava
na estante da biblioteca
e de felinos ― eureka! ―
à senhora já chegava.
Arranjou um cão lulu
e num berço de bambu
mui eléctrico o embalava,
mas se por algum livro ia
do retrato só lhe ria
D. Tico de Calatrava.



© as musas esqueléticas

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publicado por arcadajade às 10:33
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Sábado, 20 de Novembro de 2004

Gata Preta



Era uma jovem gata preta anónima,
talvez nunca tivesse sido mãe,
nem sequer era ainda adulto o corpo.
Hoje morreu de amor,
hoje amanheceu morta coberta de geada.
Talvez buscasse um gato parecido com ela.
Janeiro não deixou que cumprisse
o destino de ter filhos.
O corpo juvenil estava teso de gelo
frente à casa onde guardo a lenha
com que às vezes me aqueço.
Por perto não havia crianças
para um funeral digno, e o sol brilhava
gelado em minhas mãos que a sepultaram
no silêncio da terra, sozinhas, sem ninguém.


mb

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publicado por arcadajade às 21:08
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