Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem.
Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa.
Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos
Manuel António Pina
Olhos atentos tentando entender,
absolutamente parada, a cabeça tensa,
as orelhas espetadas como se pudesse ouvir
as palavras que eu ia escrevendo,
a pequena gata seguia cada um dos meus gestos
como se fossem incertos insectos
correndo inquietos sobre o papel.
Os gatos velhos e os homens jovens
não se interessam por coisas fúteis como
palavras escrevendo e gatos atentos,
têm pouco tempo, sobretudo por dentro.
Manuel António Pina, Os Livros,Assírio & Alvim, Lisboa, 2003
Tinha ao colo o gato velho
cansadamente passando
a sua branca mão pelo
pêlo dele preto e branco
Sentada ao pé da janela
olhando a rua ou sonhando-a
todo o passado passando
a passos lentos por ela
Dormiam ambos enquanto
a tarde se ia acabando
o gato dormindo por fora
a avó dormindo por dentro
Manuel António Pina, Os Livros, Assírio & Alvim, 2003