Sábado, 10 de Outubro de 2009

que nos olha


 Colette

 

Um gato é aquele ser impassível que, sem cerimónias, pode instalar-se – a afirmar direitos e intimidades – exactamente sobre o caderno onde o dono está a escrever; mas é também aquele que é capaz de, distraidamente, se passear por cima de montes de papéis espalhados sobre uma secretária sem que o mais pequeno desvio se note depois da sua passagem. (...)

 

O gato é também aquele ser que nos olha com intensidade mas sem expressão, de forma que nas suas pupilas, mais ou menos dilatadas, apenas podemos descobrir um inteligente espelho de nós próprios e do mundo por trás de nós, ao mesmo tempo que no seu brilho encontramos a lampadazinha de que fala Adams, que devassa os caminhos para os tesouros insuspeitados existentes no nosso íntimo.

 

Maria Cândida Zamith Silva, A Figura do Gato como Capa para Considerações mais Profundas: Lope de Vega, Hoffman, T.S. Eliot

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Quinta-feira, 25 de Outubro de 2007

Gatos e mais gatos

 

Não há muito tempo, ela não estava em casa quando fomos para a cama. Não entrou durante a noite. No dia seguinte, nada de gata cinzenta. Nessa noite, uma vez que gata cinzenta não estava na posição de prestígio, gata preta ocupou-a.
No dia seguinte, liguei todos os mecanismos de defesa: bem, era só uma gata, etc. E fiz as coisas rotineiras: Alguém viu uma gata cinzenta meia siamesa com a barriga esbranquiçada e manchas pretas? Ninguém tinha visto.
(…)
Ao fim de quatro dias, gata cinzenta apareceu, veio correndo pelos muros. Talvez tivesse sido roubada e tivesse fugido; talvez tivesse ido visitar alguma família que a admirasse.
Gata preta não ficou contente de a ver.
De tempos a tempos alguém em casa ralha com as gatas, quando pensa que ninguém está a ouvir: Palermas, idiotas, por que é que não são amigas? Pensem no que perdem, que bom que seria!
Na semana passada pisei o rabo de gata cinzenta sem querer; ela soltou um berro, e gata preta saltou para matar: reflexo instantâneo. Gata cinzenta tinha perdido favores e protecção, assim pensou gata preta, e tinha chegado o seu momento.
Pedi desculpa a gata cinzenta, acariciei as duas. Aceitaram estas atenções, olhando uma para a outra todo o tempo, e seguiram os seus caminhos separados para os seus separados pires, os seus separados lugares para dormir. Gata cinzenta rebola-se na cama, boceja, lava-se, ronrona: gata favorita, gata patroa, gata rainha pelo direito da força e da beleza.
Gata preta tende a acomodar-se agora — não há gatinhos, de momento — num canto do vestíbulo onde fica de costas para a parede, e pode vigiar os invasores que cheguem do jardim, e espiar os movimentos de gata cinzenta, escada abaixo, escada acima.
Quando gata preta dormita, olhos semi fechados, torna-se no que realmente é: o seu ser verdadeiro, sem a devoção atarefada a que a maternidade a obriga. Pequeno animal sólido e macio, sentada, uma gata preta, preta com o seu nobre perfil, curvo e distante.
Gato das Sombras! Gato plutónico! Gato de alquimista! Gato da meia-noite!

Mas gata preta não está hoje interessada em cumprimentos, não quer ser incomodada. Faço-lhe festas, ela arqueia levemente as costas. Solta um meio ronrom, num agradecimento polido ao alienígena, volta a olhar para o mundo escondido atrás dos seus olhos amarelos.

 

Doris Lessing, Gatos E Mais Gatos, trad. de Mª Isabel Barreno, Ed. Cotovia, Lisboa, 1995

 

 

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Sábado, 13 de Outubro de 2007

estórias verdadeiras com gatos dentro


Franz Marc, Gato em almofada amarela


Sempre gostei de gatos.
O meu petit nom deve-se a eles.
Quando era petiz roubava todos os gatos que encontrava nas ruas.
Levava-os para casa, ficava feliz.

Minha Mãe safava-se deles...inventava uma cena para justificar o seu desaparecimento.
Na esperança de que um dia eles ficassem para sempre, eu insistia em trazer mais gatos e, não bastando este acrescento de família, até crianças da rua, que saltavam e bricavam comigo em estórias inventadas de bibe. Era um sufoco, concordo, para minha Mãe que tinha que alimentar a gataria e a miudagem toda acampada lá em casa.

O processo repetia-se e os longos sermões, para me demoverem de tais comportamentos. Tudo isso entrava por um ouvido e saía por outro ( deve ser por isso que a Natureza nos dotou com dois ouvidos, e não três, nem um.)
Certa ocasião levei uma sova.
Desta vez jurei a mim mesma que havia de recompensar-me de tal injustiça.
Passaram alguns anos, tinha à volta de quinze para dezasseis primaveras,decidi desaparecer de casa, para dar uma lição mestra a minha Mãe.

(Nessa altura já tinha entrado para a Faculdade, e valeu-me uma Madre - era assim que se chamava à Freira Mestra das Residências para universitárias - a quem propus a minha estadia ali, e o pagamento dela após o meu primeiro trabalho, o que foi integralmente cumprido.)

Agora percebo porque os gatos fazem parte de mim, da minha rua, do meu prédio, da minha cidade, do mundo.
Hoje dedico-me a outras tarefas...

 


maat



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Segunda-feira, 20 de Agosto de 2007

Gato, Gato...

Os vocábulos para denominar o gato não provêm do indo-europeu, mas de uma raiz celta do tipo *catt. Há quem pense, contudo, que os nomes europeus para designar o gato poderiam proceder de África, pois encontram-se termos de consonância semelhante em árabe (kit), em núbio (kadis) e em berbere (kaddiska). Mas o empréstimo poderia ter ocorrido em sentido oposto.

Seja como for, o gato doméstico e a palavra cattus aparecem em latim bastante tardiamente, por volta do século V. Em latim existia apenas feles para designar um gato selvagem. Do cattus latino derivam o espanhol e o português gato, o francês chat, o italiano gatto. As formas das línguas germânicas (ing. cat, al. Katze, holandês kat), são um empréstimo das românicas ou então remontaram ao termo celta - se esta etimologia estiver correcta.

Mas passemos a outra coisa. Quando Boileau escreve, na sua primeira Sátira: «J'appelle un chat un chat et Rolet un fripon.» (Chamo gato a um gato e a Rolet, patife, ou: chamo as coisas pelo seu nome), utiliza uma fórmula corrente - «Entendre um chat sans qu'on dise minet.» que joga com o duplo sentido de chat e de minet. Chas, buraco da agulha, que se compara com o sexo feminino, e o seu homófono chat, gato, foi o que permitiu a utilização de chat, chatte ou de minet com o mesmo sentido. O que não significa que se deva desprezar a analogia entre o pelo do gato e o púbis feminino, já que pussy, em inglês e gatto em italiano podem também designar o sexo feminino.

 

Louis-Jean Calvet, Historias de Palabras, Editorial Gredos, Monografias Históricas, Madrid, 1996 (tradução da arcadajade) 

 

 

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Sábado, 9 de Junho de 2007

CIO

 

 

 

 

 

 

 

 

Escrever não é tudo. Há ainda o mundo e as rugas do mundo, o cheiro a peixe seco, os becos quase sempre povoados de lixo. Quando chegava a casa, espreguiçava-se lentamente e punha-se a pensar nisto. Pensava muito. Subia ao sofá e olhava lá para fora, nostálgico do que nunca fora. Até que adormecia, à espera de um novo cio que o libertasse dos desejos humanos.

 

Miguel Cardina



 

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Quarta-feira, 5 de Outubro de 2005

A pena

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     Vivia só com os gatos, deixara de parte a vida c om os outros seres humanos e, todas as noites, aquela senhora, antes de adormecer, metia no seu leito um livro, um objecto ou uma carta, para reencontrar, em seus sonhos, as coisas que amava. Um dia, sobre um dos travesseiros, poisou uma pena que um jovem amante lhe oferecera.
     E o rapaz sonhou que a matava.

Tonino Guerra, Histórias para uma Noite de Calmaria, Assírio & Alvim, Lisboa, 2002

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Quarta-feira, 18 de Maio de 2005

Morada

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Os gatos tomam lugar na sua própria sombra de portas arrombadas. Descem dos telhados da suposição e trazem testemunhas arranhadas. Não se servem de mistérios, apenas são silenciosos.
As suas feridas ardem de tão sinceras, geradas numa velocidade incompreensível, irredutível.
Os gatos encontram-se com os olhos cheios de luz. Vivem como lanternas neste monumento inóspito, mausoléu de dias vagamente terrestres. Os gatos circulam como corpos transbordantes, porém guardam-se de dádivas fúteis em salas de espera.
A sedução de um gato é aceitar o papel de igual. Não admite truques.
Quando as casas propõem o seu espaço, os gatos acolhem-nas e são interiores a elas. Casa e gato precipitam-se para uma linguagem de movimentos bruscos e longos sonos de parede. Os gatos constroem-se à volta de um pequeno demónio, a única coisa que o céu tem para lhes dar é pássaros. A sua religião é despida de argumentos, conclui-se numa breve teoria do fascínio.
Os dias são gatos planetários para a nossa constituição. Somos felinos quando usamos concretamente a boca sobre uma matéria de desejo. Como o vento verga os cereais arrebatados, como a água se faz cair sobre a água, como a electricidade estoura uma lâmpada, como um automóvel atropela o outono, como homem e mulher se cruzam num terraço de cristais, como o fogo reclama a aparição de susto do espírito.
Não se pode conter uma fúria, virá um gato para a puxar fio a fio. Não se pode arredar um grito, virá um gato para o trepar até ao eco. Não se pode camuflar uma sirene, virá um gato para lançar sobre os telhados o alarme ensurdecedor da nossa arrepiada biologia.
E antes que o tempo felino nos cace entre os caixotes de cartão que deixamos a apodrecer no sótão da nossa natureza. E antes que o rato vil da prudência se sente a rir sobre o nosso cadáver perfumado.

Por Canto de Ossanha que morava aqui: http://www.cantodeossanha.blogspot.com/

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Sábado, 27 de Novembro de 2004

Saudade

Era uma vez um gato que tinha um homem guardado dentro de uma caixa de sapatos. Quando o gato partia à aventura pelos telhados, o homem vingava a sua ansiedade em alpista e frutos secos. Um dia, o gato deixou a caixa aberta e o homem fugiu para sempre. Escravo da sua (in)dependência, o pobre humano lembrava-se todas as noites do sabor das cascas de pinhão, do som da pele a roçar no cartão prensado, dos pêlos do gato. É isto a saudade.

Miguel Cardina em O Olho do Girino

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Terça-feira, 15 de Junho de 2004

Para Quin-Quin, o gato

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Querido Quin-Quin,

Porcaria de Quin-Quin, o gato, que não pára de atacar Noëlle por dar cá aquela palha. Quin-Quin ciumento, Quin-Quin possessivo, Quin-Quin glutão, mas Quin-Quin asseado, excepto quando Quin-Quin se deixa cair na banheira de Noëlle! Quin-Quin que desata a fugir quando eu me irrito, Quin-Quin que foge a sete patas quando eu corro atrás dele, Quin-Quin gorducho, Quin-Quin medricas, Quin-Quin malandro que encontra sempre um esconderijo para abrigar o seu focinho, Quin-Quin gato acima de tudo, que sabe fazer-se amar e gariciar, que sabe arranhar e fazer-se perdoar, que sabe roubar e fazer-se mimar.

De sa fourrure blonde et brune
Sort un parfum si doux qu'un soir
Je fus embaumé pour l'avoir
Respiré une fois rien q'une...

Chat te plaît? É de Baudelaire. Ele tinha razão; deves ter-nos enfeitiçado. Senão, como é que suportaríamos as tuas asneiras? Chat, sem dúvida! Evidentemente, a sua poesia deixa-te frio. Tu és muito mais sensível à beleza dum croquete ou à poesia duma goluseima do que à do alexandrino.

És o último duma ninhada de oito, e levaste bastante tempo para vir ao mundo com o teu olhar maroto e a tua cauda atada. Vou dizer-te: tu és um gato-cão, de tal forma tu és ciumento, ciumento ao ponto de morderes os tornozelos de Noëlle quando ela é mais gentil comigo do que contigo. Incrível!

E eis que brincas ao gato pendurado nos móveis e em cima dos teus donos! Decididamente, não respeitas nada. Se voltares a atacar Noëlle com as garras todas de fora, mando-te para a S. P. A. ou para casa de Brigitte Bardot! Tratava-te das patas!

Viens, mon beau chat, sur mon coeur amoureux;
Retiens les griffes de ta patte,
Et laisse-moi plonger dans tes beaux yeux
Mêlés de métal et d'agate.

Mais uma vez Baudelaire... um maldito apaixonado pelos gatos. Noëlle poderia muito bem ter escrito para ti essa estrofe. E tu, tu podias mostrar-te mais gentil com ela.

Esse curioso nome de Quin-Quin, donde é que pode vir? Depois de um inquérito sobre a onomástica felina, duas pistas genealógicas permitem julgar o caso do Senhor Quin-Quin.

A primeira afirma que é o diminutivo de Arlequim. Isso agrada-me bastante, por causa de La Double Inconstance, de que interpretei uma cena na minha entrada para o conservatório; por causa, também, da Itália, o país de Arlequim e o meu. E depois o nome fica-te bem, pois és divertido como todos os Arlequins.

A segunda hipótese pretende que Quin-Quin vem do título dum romance que eu gostaria de adaptar ao cinema, mas de que o autor vendeu os direitos aos Americanos: A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água, de Jorge Amado. Quincas, Quin-Quin... Estranho.

Mas enquanto eu me empenho em explicar-te as origens do teu nome, tu adormeces em cima do tapete. Então! Não vais fazer outra! Quin-Quin! Quin-Quin?

Ils prennent en songeant les nobles attitudes
Des grands sphynx allongés au fond des solitudes,
Qui semblent s'endormir dans un rêve sans fin.

Ainda Baudelaire! Decididamente, ele compreendeu tudo acerca desses adoráveis animais satânicos. E eu, eu compreendi que és o dono desta casa, e contentar-me-ei, para acompanhar o teu ronrom, com uma pequena cantiga de embalar:

Dors mon p'tit Quin-Quin
Papattes en rond et tutti quanti...

Uma garícia para ti.

 

O teu «dono» Serge

Serge Reggiani, Último Correio antes da Noite, Campo das Letras, Porto, 1996

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Segunda-feira, 5 de Abril de 2004

Em redor de «Rente ao Chão»

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Eu já falara nele noutro poema. Dizia então que «o meu amor por esta alminha era materno». Que um homem assumisse poeticamente a maternidade não poderia causar estranheza, mas que tratasse por «alminha» um gato era coisa de que só o diabo se lembraria. De qualquer modo, com ironia ou sem ela (cada qual lê um poema como pode), o que naqueles versos vinha à tona era uma ternura mal disfarçada pelo pequeno persa azul que, num dia de anos, os amigos me trouxeram por terem surpreendido, na maneira como acariciava os gatos deles, uma profunda nostalgia. Realmente, eu tivera uma infância povoada de felinos, e um deles, como contei em A Sereia do Báltico, foi a alegria de muitos dos meus dias. Colhido de surpresa, ora olhava os amigos, ora aquela maravilha que me cabia na mão, com terror e fascinação ao mesmo tempo, pois a partir de então a minha liberdade parecia ameaçada. A minúscula criatura fixava-me com olhos de cobre esfregado de fresco, redondos, imensos, e perante aquele olhar sentia-me à sua mercê - fomos então tratar da instalação. Os amigos haviam previsto tudo: cama, tabuleiro, areias, pratos, alimentos, tudo tinham trazido. Colocámos a cama e as areias no quarto de banho, pratos e tigela foram para a cozinha. Acertámos no nome, e como era do tamanho de uma avelã, e janeiro ia muito frio, acabei por levá-lo para o quarto: primeiro para junto do calorífero, depois para a cabeceira da cama, onde se habituou a dormir, às vezes a minha mão por travesseiro. E fui-o vendo crescer, na certeza de que ao meu lado crescia um exemplar perfeito da sua raça: cabeça robusta, orelhas delicadas, narinas rosadas, pêlo espesso e sedoso; mais exuberante no pescoço e na cauda - era um príncipe oriental que dividia comigo os seus dias, sem coroa e sem mundo para governar, mas de uma beleza que se fosse humana seria insuportável. A alimentação requeria cuidados, e eu era incapaz de qualquer repressão: se não lhe agradava uma coisa dava-lhe outra; acabou por ficar caprichoso, avezado ao frango, à pescada, a esses enlatados que exigiam conta e medida, doutro modo apareciam diarreias, preocupações. Informei-me na clínica como deveria alimentá-lo; procurei livros, que não encontrei. Mandei vi-los de Espanha, de França, e no meio dos que me chegaram, e se repetiam até à exaustão, surgiu um de Desmond Morris, que li com avidez. Também reli poemas do Baudelaire, do Eliot, mas os gatos do Baudelaire não eram gatos eram as suas amantes, e os do Eliot eram caricaturas dos seus amigos. Na Colette, no Léautaud, no Aquilino, no Neruda, aí, sim, havia gatos, como também se encontravam nos desenhos de Steinlen. Passei a viajar e a sair menos; o Micky habituara-se tanto a mim que, quando saía de casa, vinha à porta e olhava-me de tal maneira que, por vezes, acabava por não sair. Pouco me demorava, é certo, mas nunca deixava de me aguardar no regresso; devia conhecer-me os passos, porque entrasse eu tarde ou cedo lá estava ele e os seus olhos imensos - e tão formosos que não sei mesmo se alguma vez vira outros assim. Eram, como já disse, os olhos de deus. Então roçava a cabeça pelas minhas pernas, erguia-se nas patas dianteiras até aos meus joelhos, pedia-me uma palavra, uma festa. Era a minha vez de responder: pegava nele, aconchegava-o nos braços, prometia-lhe nunca mais o deixar só, passava-lhe a mão pela cabeça, pelos flancos, com a polpa dos dedos acariciava-o debaixo do queixo, enquanto uma espessa e rouca e monótona cantilena ia enchendo a noite de alegria. Quase não viajava, pois. Nesse tempo, só me lembro de ter saído duas vezes do país. Da primeira, o Micky ficou em casa dos amigos, mas de início os seus dias foram penosos: não comia, passava o tempo debaixo dos móveis, e só não se lamentava porque era estóico de natureza. Da segunda vez, como sabia do apego que estes animais têm ao lugar onde vivem, ficou sozinho em casa, confiado ao Miguel e à empregada. Creio que passou então melhor, embora sempre estranhado. Como já disse, ele dormia enroscado aos meus pés ou à cabeceira: parecia um ouriço- Durante a noite costumava acordar duas ou três vezes; dava então um pequeno passeio pela cama e, invariavelmente, aproximava o focinho húmido da minha cara, via se respirava, e só depois pulava para os pés, enroscava-se para adormecer de novo. De manhã, por volta das oito, começava a brincar com o meu cabelo, a mão delicada ajudada pêlos dentes agudos, até me despertar; quando eu dava sinais de já estar acordado, saltava para o tapete, e sem impaciência aguardava que me levantasse e lhe desse a primeira refeição. Era na verdade a distinção em pessoa. Os dias foram passando sem nada a distingui-los uns dos outros; o Micky ajudava-me no trabalho, sentado ao lado da máquina quando escrevia, ou no meu colo quando ouvia música; ou então brincava com uma folha de papel amarfanhada atirada ao chão. Um ano havia já decorrido desde que chegara a casa embrulhado no xalito de lã branca, ou até passara mais, pois a primavera estava outra vez no quintal das traseiras, e pousava na macieira, carregando-a de flor. Uma tarde senti uma agitação nas areias do quarto de banho maior que a habitual. Levantei-me e, com espanto, verifiquei que apesar de muito removidas, nas areias não havia sinais de humidade, ou outros. Voltei ao trabalho, e passados instantes senti agitação igual. Aproximei-me, e depois de o Micky se ter levantado vi que as areias continuavam secas. Procurei então lembrar-me a que horas lhe limpara o tabuleiro pela última vez. Não me recordava de o ter feito nesse dia; olhei o relógio: eram quatro da tarde. Fui à cozinha, a comida estava toda no prato. Entretanto o Micky voltara às areias: não conseguira, apesar do esforço, verter mais que duas ou três gotas de urina. Contra os seus hábitos, saltou para dentro da banheira, arrastando-se desesperado no frio do esmalte, procurando assim aliviar-se. Como nada conseguisse, arrastava-se agora pelos mosaicos, e foi então que os seus olhos encolheram de medo e se meteram pelos meus, a suplicar auxílio - pois como podia viver-se com aquele nó cego a estrangulá-lo? Corri ao telefone, chamei um táxi. Como era conhecido na clinica, e invocara urgência, fui imediatamente atendido. O médico procurou acalmar-me, fez-lhe uma algaliação, colheu urina para análise, deu-lhe um pouco de soro, e recomendou que voltasse no dia seguinte; tratava-se de cálculos, coisa frequente na raça, muito susceptível, diria. Voltámos para casa, o Micky comeu um pouco, mas na manhã seguinte não pegou na comida, e quando procurou as areias foi a mesma exasperação: as urinas de as urinas de novo retidas. Voltei à clinica; nas três semanas que se seguiram voltaria lá muita vez; já não era só a retenção da urina o que lá me levava, o Micky deixara de se alimentar, e eu, por mais que quisesse, não conseguia meter-lhe na boca fosse o que fosse. Nem sequer a água, que procurava introduzir-lhe com uma seringa. Pedi o seu internamento, e que se tentasse a operação. Mas estava muito debilitado os pulmões atingidos. Ia vê-lo todos os dias, à noite, quando o serviço da clínica tinha acabado. E lembro-me bem da nossa despedida, o oiro dos olhos embaciado. Eu sempre soube que a beleza era o que havia de mais frágil sobre a terra.

Eugénio de Andrade, Rente ao Dizer, Fundação Eugénio de Andrade, Porto, 2ª ed., 1992

 

 

publicado por arcadajade às 00:20
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