De criança sempre gostei de canas
e roubava-as do rio
ainda verdes.
Deixava-as depois estendidas ao sol durante todo o verão
e recolhia-as, ligeiras,
como o sussurro dos mosquitos.
Quando no Inverno
os ossos estalavam de frio
e os gatos tossiam sobre o damasqueiro
corria até ao sótão
e metia as mãos no meio das canas quentes
ainda com todo aquele sol em cima.
Tonino Guerra, Mel
Gato preto sentado no gelo - foto encontrada em portugues.torange.biz/
Vivia só com os gatos, deixara de parte a vida c om os outros seres humanos e, todas as noites, aquela senhora, antes de adormecer, metia no seu leito um livro, um objecto ou uma carta, para reencontrar, em seus sonhos, as coisas que amava. Um dia, sobre um dos travesseiros, poisou uma pena que um jovem amante lhe oferecera.
E o rapaz sonhou que a matava.
Tonino Guerra, Histórias para uma Noite de Calmaria, Assírio & Alvim, Lisboa, 2002
Uma mesa de plástico, branca
junto da tarde que morre
e renasce por pequenas paixões
de repente estávamos sozinhos
as ilhas muito inacessíveis
agora que escureceu
o menor desejo teria um sentido delicado
os olhos velozes de um gato
viam coisas belas
lado a lado com os homens
pareciam quase não ter sofrido
a mesa estava encostada às janelas do café
e nós de forma desolada
ignorados, aturdidos, de passagem
não muito mais
procuro desse facto uma versão
que me não conduza à inconfidência
era uma mesa lisa, branca
uma razão soletrava ao acaso
a medida soberana do incerto
olhos velozes de um gato os teus
olhos
José Tolentino Mendonça, Baldios, Assírio & Alvim, Lisboa, 1999